Nossa miséria

Eis o fim do ano novamente e, com ele, as inevitáveis reflexões que nos ocupam a ponto de incomodar.

Por certo temos convivido mais com elas. Nesse tempo de absurdos, impossível não remoer sobre tudo, incessantemente, a cada minuto. E a profusão de eventos — portanto, de análises — é proporcional ao desalento que promovem. O pensamento, voando mais veloz que a nossa reação, sem conseguir abrandar a angústia, nos retém num limbo, num estado de vacilo: percebemos demais e agimos de menos.

Nesses quatro anos do desgoverno que quase literalmente asfixiou o Brasil — período de abusos, irregularidades, desequilíbrios e descaramentos de uma força maligna —, tivemos que conviver igualmente com o escárnio, cujo representante maior felizmente está prestes a sair de cena. Capitaneada por ele, como nunca se viu antes, a zombaria com o padecimento e a privação se deram em várias esferas.

Por ser próxima e explícita, uma das decorrências mais chocantes dessa tragédia tem sido justamente a indigência, cuja dura cara nos foi impingida, tomando conta das ruas brasileiras de norte a sul. Só quem vive em algum universo paralelo, imerso no próprio umbigo, não percebeu o imenso flagelo da miséria que se espalhou, país afora.

Por aqui, os desvalidos vivem como vivem as pessoas que habitam as zonas de conflitos armados: padecem de violência ininterrupta, de carência e de incerteza constantes. São inumeráveis vidas desprovidas de valor, multidões que vivem como num estado de guerra. E são muitas as batalhas que se conflagram — a da fome, que se evidencia nas calçadas, é apenas uma delas.

Pra mudar esse trágico cenário, é imprescindível compreender que a pobreza e o desamparo são nossos também, e não apenas dessas pessoas desprotegidas. É a nossa miséria como nação e como indivíduos, é a pobreza de uma gente que não conseguiu evoluir para reconhecer que toda a forma de vida requer respeito e atenção, que não haverá florescimento e nenhum tipo de progresso verdadeiro, muito menos civilidade, sem cuidado e solidariedade, que é crucial se garantir o mínimo para todos, que a indignidade da penúria nos arrasta à baixeza e que esse é um desequilíbrio no qual estamos todos implicados.

Não há virtude maior do que no amor — quem não o “sabe”? E a obviedade disso só torna mais patética a nossa condição.

Não nos esqueçamos, portanto, da nossa miséria, nem das palavras simples e perfeitas de Antonio Carlos Jobim que há muito nos advertiu através de sua sábia e fraterna poesia: “fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho”.

Que chegue um melhor tempo para a gente do Brasil!

11 comentários em “Nossa miséria”

  1. Luanaa Limaah

    E eis que consiguistes colocar em palavras , meu pensamento! Essa lucidez é mto tua !
    Gratidão !🙌🙏

  2. Liliane Giordani

    Excelente texto!! Como sempre Dudu Sperb toca nossa alma e nos anima a seguir! Gratidão por tanto!!

  3. Loma Solaris

    E assim é desde o Egito antigo. Na roda da vida, o opressor segue escravo se julgando liberto.

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