Divina e maravilhosa

Não sei se é fato, e isso já faz algum tempo, mas lembrei de uma frase atribuída a Caetano Veloso, que dizia mais ou menos assim: “Pintou a voz de Gal e o Brasil ficou endividado”. 

A ideia de um país “em dívida” com seu universo artístico diz muito sobre o significado da cultura. A imagem de qualquer lugar está profunda e indissociavelmente ligada à cultura que nele floresceu. E, sendo justamente as suas manifestações que agregam sentido, formam, diferenciam e traduzem as nações, como não nos sentirmos reconhecidos aos nossos artistas e suas obras? 

No Brasil, na vastidão de território que abriga inúmeros grupos em distintas regiões, com suas peculiaridades, práticas, saberes e atividades criativas e sociais tão diferenciadas e valiosas — e que são apreciadas mundo afora —, esse compromisso se amplia: é mais do que necessário agradecer e louvar a imensidão de criadores e a produção que constitui toda essa riqueza que denominamos genericamente de “cultura brasileira”. Então, sendo “devedores” dela, a melhor forma de saldar em parte o nosso “débito” é conhecendo-a, vivenciando-a, exaltando-a. Agora, é momento de, mais uma vez, agradecer e louvar nossa Gal — a Graça bonita e talentosa que nos deixou enamorados da beleza de seu canto. 

Como bem sintetizou Caetano, recentemente, após sua morte, “a emissão da voz em Gal era, já, música”. Um timbre tão belo assim é, por si só, um deslumbre e a voz de Gal era por certo um motor de encantamento. Mas havia mais.  

Além disso — e da afinação e colocação instintivas, com ressonância, articulação e respiração favorecendo e tornando clara e brilhante a projeção da voz —, ela conjugava (como poucas cantoras) um modo natural de entoação, despretensioso, sem esforços aparentes, com qualidades técnicas evidentes, o que resultava num som de incrível magnetismo. Seu canto de sereia provinha de tudo isso, da beleza orgânica da voz e desse modo espontâneo de cantar somado a uma grande musicalidade. Graça, simplicidade e excelência. 

Outra coisa que sempre me chamou a atenção em shows e em gravações, era a maneira como o canto de Gal fluía especialmente bonito quando ela estava apenas acompanhada por um violão. Talvez isso se desse, em grande parte, pelo fato de se poder apreciar melhor “aquela voz”, mas havia igualmente qualquer coisa de singular nesse formato, algo mágico que se estabelecia, uma combinação perfeita que a deixava ainda mais à vontade, suprema. Nessas ocasiões, soando plena, a voz precisa — vida que não era mais dela que da canção — parecia tomar a música para si, orientando-a através do poder de sua beleza, entendimento e fineza essenciais, com um brilho maior do que quando cercada por grandes massas sonoras. O registro da canção “Minha voz, minha vida” é um exemplo claro disso. A primeira volta, na qual o único instrumento que a acompanha é um violão (não sei dizer quem toca, pois no disco não constam os nomes dos músicos), é muito mais bonita, expressiva, contundente e potente que todo o resto orquestrado. Na verdade, o arranjo dessa faixa, hoje me soa bastante datado e mesmo um tanto “fora do tom” em relação ao teor da canção e ao que a própria interpretação de Gal sugere. Mas a combinação de voz e violão do começo resulta tão perfeita, que ela mesma chega a declarar no final: “Ficou bonito isso… né?!”. 

Dos discos de Gal que eu mais ouvi e que mais me encantaram, dois se destacam: “Água viva” e “Gal tropical”. Esse último, aliás, está entre os meus preferidos. O repertório é impecável. Há a delícia de “Samba rasgado”, há composições de Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho, de Cascatinha e Inhana (em que ela canta num de seus registros mais graves, pra no final oitavar e chegar em agudos brilhantes), de Tom Jobim e Dolores Duran, de Caymmi (novamente aparecem os graves), de Rafael Hernadez (compositor porto-riquenho, uma faixa que adoro), duas de Caetano, duas de Roberto e Erasmo (sendo “Meu nome é Gal” uma gravação antológica, na qual ela atinge um registro mega agudo, duelando com uma guitarra), e, finalmente, há Luís Melodia e a explosão de “Balancê” (antigo sucesso de Carmen Miranda que ela revisitou, inaugurando uma fase mais “carnavalesca” em sua carreira). Enfim, trata-se de um grande disco, um clássico com canções, instrumentações e arranjos de primeira e com ela apresentando uma voz no auge de suas potencialidades, com classe e leveza, com uma gama impressionante de nuances interpretativas, vivacidade, exuberância e expressividade. 

Como se não bastasse tudo isso, Gal Costa construiu uma trajetória artística invejável, soube viver e interpretar seu tempo, selecionar suas músicas, seus parceiros, ousou e bancou suas escolhas, nos legou lindas produções, discos e shows, influenciou inumeráveis artistas e encheu de deleite e de amor o coração de seu imenso público, inscrevendo seu nome na história musical do Brasil e contribuindo divina e maravilhosamente para o enriquecimento de nossa cultura. 

Caetano tinha razão: somos, sim, seus devedores. Salve, Gal!

15 comentários em “Divina e maravilhosa”

  1. Com que propriedade, Dudu traz e nos revela mais e mais, o presente enorme que ela é para quem tem a Graça de perceber e vivenciar a sua (dela e de quem a aprecia) na voz DELA.

  2. Teresa Poester

    Amei esse texto. Tudo. Deveria ser publicado em um grande jornal para mais gente ter acesso. Obrigada por publicar aqui.

    1. Teresita querida, que bom que gostaste. Eu que agradeço tua leitura atenta e carinhosa. 💗🌟😘

  3. Amei o texto, Dudu! Uma linda homenagem ao que foi este furacão chamado Gal. O que seu canto nos deixa e também o que representa continuará ecoando em nossos corações. 🧡💐

  4. José Miguel Wisnik

    Maravilhoso, querido Dudu! O cantor revela-se um surpreendente ensaísta. Indo ao coração do canto, o texto me parece ao mesmo tempo mais leve e mais profundo do que tudo que li nesse momento sobre Gal.

    1. Querido Zé Miguel, me deixas sem palavras… E também maravilhado e surpreso com a tua apreciação. Obrigado! 💗

  5. Dudu este teu texto parece se fundir com a voz da GAL, ondulado, sensível e tocando fundo. Gostei muito, abração.

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