Maria Callas e a ofensiva machista

Maria Callas foi provavelmente o maior fenômeno vocal do século vinte, a personalidade mais popular do mundo da ópera e a voz mais reverenciada desse universo, não apenas por seu impressionante talento e beleza mas, igualmente, por seu profissionalismo, sua inteligência e percepção artística, seu primoroso labor do canto, pelo mergulho intenso em suas interpretações, sua profunda emoção e entrega às personagens e à cena, enfim, por seu extremo amor e respeito à música.

Além da enorme versatilidade de repertório — o que lhe rendeu a qualificação de “soprano absoluta” —, La divina, como ficou conhecida, foi responsável por uma renovação e revigoração do canto lírico, reinventando óperas como Traviata, Tosca etc., reabilitando outras, como Medeia e Norma, e trazendo a inúmeras produções um novo estilo de atuação, ao mesmo tempo em que personificava o bel canto. Criteriosa e perfeccionista, acumulou vários desafetos, embora, certamente, muito mais paixões.

Há algum tempo, me deparei com essas charges que reproduzo acima e, perplexo com a hostilidade das abordagens, fiquei me perguntando quem as teria concebido assim, tão desabonadoras e afrontosas. Aparentemente, foram publicadas por periódicos alemães e parecem ser de um mesmo artista. Talvez ele próprio nutrisse antipatia por ela, ou talvez fosse o jornal ou revista na qual ele trabalhava que não a tolerasse. O fato é que todas são bastante agressivas e, até mesmo, impiedosas.

A primeira, apresenta a cantora junto a uma orquestra decretando em plena cena: “Não, hoje eu não canto!”. Mostrando-a como uma diva caprichosa e pouco profissional, essa imagem evidentemente faz referência a um episódio específico ocorrido em Roma, em 02 de janeiro de 1958, quando da apresentação da ópera Norma, de Bellini. Por estar adoentada, nessa noite ela não conseguiu ir até o fim, cantando apenas o primeiro ato (chegando, porém, a executar Casta diva, a sua ária mais famosa). A plateia estava lotada de celebridades, incluindo a atriz Ana Magnani, Gina Lollobrigida, Elza Maxwell, diplomatas, aristocratas, além de Giovanni Gronchi, o presidente da Itália, à época. Após esse incidente, Callas foi execrada e, embora tenha reiterado posteriormente, em várias entrevistas, que ela se encontrava enferma naquela ocasião — e que, portanto, não teve condições de continuar —, esse acontecimento comprometeu em certa medida sua carreira, sobretudo na Itália, e ela seguiu sendo acusada e cobrada por isso, até o fim.

Na segunda ilustração, vê-se Maria, imensa, frente a alguém ajoelhado e aflito, provavelmente um empresário ou diretor de teatro que lhe oferece um saco de dinheiro no qual a “medição” mostra seis zeros — ou seja, algo na casa dos milhões —, enquanto ela, com ar superior, excêntrica e inflexível, dispara enfastiada: “O dobro!”. Aqui, o absurdo maior talvez seja o de mostrar o “homem do dinheiro” como um coitado que necessitasse dela para sobreviver, como alguém que estivesse sendo explorado ou como se, ao se associar a uma das maiores artistas do mundo, ele não fosse obter um bom lucro.

O terceiro desenho possui o mesmo sentido, a mesma imputação de mulher gananciosa e hostil. Caracterizada como um soldado grego da antiguidade (numa grosseira alusão à sua ascendência), o que se vê é o retrato de uma feroz “guerreira capitalista”. Com um sorriso e um olhar agressivos, ela porta um capacete espartano, uma lança e, lhe servindo de apoio, à guisa de escudo ou emblema, uma enorme moeda na qual figura um cifrão. E, para que não restasse dúvidas de que se tratava mesmo dela, sua própria assinatura aparece simulada.

A quarta imagem, certamente a mais perversa de todas, traz a soprano junto a seu grande amor, o milionário grego e magnata da marinha mercante, Aristóteles Onassis. Enquanto ele pinga óleo em sua garganta — de onde sai uma nota frágil e imperfeita —, lê-se na legenda algo como: “Falsa ‘lubrificada’ Publicidade”. Essa charge é particularmente cruel por ter sido justo na época de seu romance com Onassis (por quem ela abandonou a cena por algum tempo) que sua voz começou a dar sinais de um maior desgaste, assinalando o começo de um declínio vocal, da perda gradativa de seu descomunal potencial técnico.

A última, a apresenta como uma tigresa subjugada que traz no rosto a carranca da dor ou da raiva ao receber uma flechada no traseiro. Seria, talvez, a seta do cupido que, ao invés de atingir o coração, vai cair numa parte “menos nobre” — justamente aquela que é usada como figura de linguagem quando se diz que alguém levou um fora? Seria uma perversa referência a outro grande dissabor de sua vida, o fim do relacionamento com Onassis?

O fato é que não se encontra facilmente nada no gênero, nenhum ataque tão ferino e inclemente, quando se trata de grandes tenores, como Enrico Caruso, Giuseppe Di Stefano, Pavarotti ou outros cantores.

Fossem de caráter pessoal ou profissional, seus atos, seus ditos, seus erros e suas desavenças foram aumentados exponencialmente junto com sua fama e tudo em Callas parecia ser motivo para hostilidades: ter atingido a glória, possuir imenso talento, ter se tornado mais bela e elegante, ser inteligente, autêntica, competente e exigente. E, acima de tudo, ter obtido sucesso financeiro — igual ou superior ao de seus pares masculinos —, numa época em que “os grandes negócios” eram totalmente controlados por homens. Eis, provavelmente, o principal motivo para que ela tenha sido alvo de tanta misoginia: a nenhuma mulher se poderia permitir que alcançasse tamanho sucesso. A entrevista que ela concedeu ao jornalista norte-americano Mike Wallace, próximo ao final de sua vida, é um dos exemplos máximos e evidentes do empenho impiedoso de uma parte da imprensa de desfazer dela e questioná-la como mulher e como artista perante a opinião pública.

Felizmente, existem numerosos depoimentos seus, em várias línguas. Neles, bravamente, e até mesmo pacientemente, ela nos revela seu lado das estórias. Hoje, parece absurdo, e quase um paradoxo, que uma artista extraordinária como ela tenha sido tão incompreendida, perseguida e maltratada.

Vissi d’arte, vissi d’amore, non feci mai male ad anima viva! — em livre tradução: “Vivi para a arte, vivi para o amor, nunca fiz mal a uma viva alma”. Essas palavras inicias da ária Vissi d’arte, da ópera Tosca, de Puccini, se afiguram como uma síntese precisa de sua vida. E a grande ironia talvez seja o fato de que — tendo atingido o sublime em seu ofício, como raras vezes se (ou)viu, e se transformado num mito ainda em vida — Maria Callas tenha sido, acima de tudo, uma mulher que desejava e merecia viver e amar como outra qualquer do planeta.

Para se ter uma ideia da dimensão desse amor e do quanto ele representava para ela, basta ouvi-la. Ela viveu e morreu por ele.

2 comentários em “Maria Callas e a ofensiva machista”

  1. Dudu canta, escreve, “pinta e borda”! Como não ser fã?
    Realmente, é um tratamento que homens não recebem!
    Baita texto.

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